Sou médico, meu trabalho tem valor


 *Florentino Cardoso


O titulo deste artigo foi slogan de uma campanha das entidades médicas nacionais em 2004, pela valorização do trabalho médico e da medicina. Passados quase oito anos, a situação pouco mudou, a despeito da luta incessante de instituições como a Associação Médica Brasileira (AMB).



É certo que conquistas foram obtidas, como no recente movimento na saúde suplementar. Em vários estados do Brasil, operadoras de saúde promoveram reajustes em consultas durante 2011. No entanto, ainda não chegaram aos patamares mínimos reivindicados pelos médicos nem resolveram a dramática defasagem dos demais procedimentos.



A exploração do trabalho médico impacta diretamente a qualidade da medicina, assim como a assistência aos cidadãos. Para quitar suas contas e garantir a sobrevivência, médicos são obrigados a acumular diversos empregos, cumprindo jornadas de 60, 70 ou mais horas semanais. Indivíduo algum, seja de que área for, consegue manter a excelência do seu trabalho com tamanha sobrecarga.



Mais alarmante ainda é ver que a problemática da desvalorização do médico e da medicina parece atender a uma política deliberada. Se juntarmos algumas peças do quebra-cabeça da saúde é a essa conclusão que chegaremos fatalmente, lamentavelmente. Vamos mudar esse rumo!



O Brasil é um dos países que menos investe em saúde no mundo. Meses atrás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou relatório anual com dados sobre a saúde no mundo, entre eles os investimentos no setor por país. Entre os 192 avaliados, ocupamos a medíocre 151ª posição. Aqui, a parcela do orçamento reservada à saúde é em torno de 7%. A média africana, extremamente mais pobre e com inúmeros problemas sociais, é de 9,6%.



O Sistema público de saúde (SUS) sofre com recursos insuficientes, impedindo a prática da boa medicina. A triste consequência surge com significativa parcela de profissionais qualificados afastando-se cada vez mais da rede pública. Isso sem falar nos salários irrisórios; na tabela do SUS que (só a título de exemplo) remunera uma consulta básica de clínico geral, ginecologista e pediatra em menos de R$ 3,00; na falta de um plano de cargos e vencimentos, de uma carreira de estado, na violência nas periferias, entre tantos outros complicadores.



Tem sido conhecida por todos as péssimas condições de trabalho e de assistência no SUS, ocasionando frustração e desmotivação. Graves obstáculos ao atendimento adequado marcam o dia a dia de postos de saúde, ambulatórios e hospitais. Quanto mais carente a região e mais necessitada a população pior é o quadro, bem evidenciado nas longas filas de espera por consultas, exames e cirurgias. Angustia-nos ver pacientes jogados em macas no meio de corredores, falta de profissionais, de medicamentos e equipamentos. Mortes evitáveis ocorrem, especialmente nas grandes emergências.



Se já consideramos o retrato da saúde pública algo como filme de guerra, vejamos o que mais tem por aí: nos últimos anos faculdades de medicina foram criadas às dezenas de norte a sul do Brasil, a maior parte delas escolas privadas (estarão visando somente o lucro?) sem estrutura mínina para formar bons médicos. Falamos de cursos sem hospital escola, com corpo docente não adequadamente qualificado, bibliotecas precárias, grade pedagógica deficiente.



O resultado é o que vimos dias atrás, quando o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo apresentou o resultado das avaliações de prova facultativa com estudantes do último ano de medicina. Quase metade deles não sabe interpretar uma radiografia, fazer um diagnóstico após receber as informações dos pacientes. Metade também faria o tratamento errado para infecção na garganta, meningite e sífilis e não é capaz de identificar uma febre alta como fator que eleva o risco de infecção grave em bebê. Em outras palavras: o que podemos esperar? E nossos filhos, pais, amigos e parentes de pessoas formadas com tamanha insuficiência de conhecimento? É, de fato, assustador.



Poderíamos parar por aqui para alicerçar o argumento de que médicos e medicina sofrem ataque deliberado nos últimos anos, assim como a assistência à população. Só que há mais, muito mais. Agora mesmo o governo federal, com a cumplicidade de alguns estados, sinaliza com a possibilidade de facilitar a revalidação de diploma de médicos brasileiros formados na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) de Cuba. Comenta-se que a ideia é permitir que façam estágio em hospitais públicos, recebendo bolsa (com recursos de nossos impostos), enquanto fazem cursinho de reforço para se preparar para uma prova. Um absurdo, que merece o devido parecer do Ministério Público Federal. Porque essa predileção por Cuba? Não somos contra médicos formados fora do Brasil virem morar e trabalhar aqui, todavia defendemos direito igual para todos.



Existe o REVALIDA devidamente chancelado pelo Ministério da Educação e que deve ser nesse momento o caminho para todos aqueles que querem revalidar seu diploma conseguido no exterior. Fortaleçamos o REVALIDA e não permitamos que qualquer faculdade ou universidade faça revalidação de diploma fora desse contexto.



Defendemos o sistema público de saúde (SUS). Não é possível o SUS continuar com recursos insuficientes e profissionais desvalorizados. Ao fazer vistas grossas à má formação e facilitar o ingresso na linha de frente da assistência de quadros não capacitados formados no exterior, afronta-se as reais necessidades dos cidadãos brasileiros, coloca-se em risco a saúde e o bem-estar dos pacientes, desvaloriza-se os bons médicos e bombardeia-se a nossa medicina – hoje ainda uma referência como excelência.



Como presidente recém-empossado da Associação Médica Brasileira (AMB), registro publicamente para que fique bem claro: reagiremos à altura em nome da boa prática médica e da adequada assistência ao povo brasileiro. Jamais defenderemos castas, pois queremos uma mesma medicina para todos. Deve prevalecer sempre o mérito e não vieses surgidos de arroubos, que não sabemos que interesses defendem. Sou médico e tenho compromisso com a vida, com a medicina e com a saúde da população.



 *Florentino Cardoso é presidente da AMB