* Angela Marinho Barreto Fontes – pediatra e presidente da Associação Sergipana de Pediatria O dengue desnudou cruamente o cenário de descaso na atenção à saúde de nossas crianças, obrigando que nossa sociedade reflita sobre a qualidade desse atendimento nos serviços público e privado. No setor privado, apesar das crianças carecerem de atenção adequada nos serviços de urgência que funcionam quase sempre sem interesse por parte dos hospitais ou mesmo à sua revelia, e de não contarem com a disponibilidade de terapia intensiva para aquelas crianças que necessitam, restam-lhe ainda os pediatras que heroicamente ainda resistem nos seus consultórios, apesar de que é cada vez maior o número de pediatras que optam por não ter consultórios particulares, por ser uma atividade altamente trabalhosa e que costuma não dar retorno financeiro. Vejo aliviada como cidadã as garantias de direitos asseguradas aos idosos e deficientes, como a reserva de vagas nos estacionamentos, o que me parece absolutamente adequado. Para a criança, no entanto, não há garantia sequer de leitos em unidades de terapia intensiva, nos serviços que atendem a estas crianças. É o direito à vida que não lhes é assegurado. Fica difícil entender esse paradoxo. Urge que se viabilize uma assistência adequada à criança no setor privado e os planos de saúde são os principais responsáveis por esta situação. Já no serviço público, várias inadequações e equívocos se revelaram com a dengue: 1) na atenção básica, nos postos de saúde, os profissionais não pediatras que fazem atendimento de crianças não lhes podem prestar assistência adequada; 2) as mães e crianças perderam o vínculo com os postos de saúde; 3) a opção da família para o atendimento passou a ser o serviço de urgência; 4) mães desorientadas e inseguras prosperaram; e 5) faltam pediatras no atendimento às crianças. O novelo é longo, tem vários fios intricados e se enrosca há anos, desde a implantação pelo SUS do Programa de Saúde da Família, quando a propósito de aumentar a cobertura do atendimento às crianças lhe privaram da garantia do acompanhamento pediátrico. Tentaremos clarear cada uma dessas evidências. No serviço público, apesar de indicadores de saúde se mostrarem às vezes favoráveis no quantitativo, eles não revelam muito sobre a qualidade do serviço prestado. Tudo começa na atenção básica, nas unidades básicas de saúde, nos “postos de saúde”, e é para onde o gestor deve direcionar sua atenção e recursos prioritariamente. Uma ação de puericultura não é só pesar, medir ou seguir simplesmente um protocolo. A puericultura encobre um olhar que exige preparo e vivência, pois a precocidade do diagnóstico faz a diferença entre a cura e a seqüela. Esse olhar se faz ao longo de uma formação na pediatria e da experiência vivenciada, caso contrário seria um olhar que não vê. A insegurança natural de profissionais não pediatras atendendo crianças as direciona com freqüência maior que o necessário aos especialistas e serviços de urgência, sobrecarregando-os com longas e desrespeitosas filas de espera, e ainda mais grave, ensinando as famílias esse caminho como a única opção para obter resolutividade dos seus problemas de saúde. Com isso, a confiabilidade que é a responsável pelo vínculo das famílias com as unidades básicas de saúde (UBS) se esvai com o tempo. Ações como as de imunizações, antes motivo de referência técnica, confiabilidade e vinculação da criança no serviço de saúde, também perderam seu vigor e brilho. Hoje lamentamos profundamente a ausência do enfermeiro responsável pelas salas de vacinas, pois estão sobrecarregados atendendo crianças, gestantes etc… Falta tempo, portanto, para essas e outras ações onde o enfermeiro é insubstituível. As consultas de rotina pelo pediatra são preciosas oportunidades de educação em saúde onde se fazem orientações importantes. Muitas dúvidas relacionadas ao crescimento, desenvolvimento, sobre doenças freqüentes da infância, alimentação e comportamento são esclarecidas e, mais uma vez, o olhar do pediatra faz a diferença, fortalecendo o vínculo da família com sua unidade ou posto de saúde, promovendo muito além da orientação, segurança para as mães. Na verdade, garantir o atendimento das crianças por pediatras é proporcionar qualidade e resolutividade no cuidado à criança. A Sociedade Brasileira de Pediatria comprometida com a saúde pública do país tem levado propostas e sugestões ao Ministério da Saúde apontando as mudanças que o SUS precisa promover para evoluir, como a inserção do pediatra nas equipes do PSF e sendo remunerado igualmente ao médico generalista. Modelos pensados e importados de outras realidades precisam ser contextualizados na nossa. A vestimenta não nos cabe, precisa com urgência desses ajustes. Não estamos nos confins da selva ou em lugares desprovidos de quaisquer recursos. Também não nos faltam médicos ou pediatras, falta sim, política adequada de saúde que os atraiam oferecendo remuneração e condição de trabalho dignas. Cuidar de suas crianças é o melhor investimento que a sociedade pode fazer para ter adultos saudáveis e cidadãos no futuro e neste cuidado o pediatra tem um papel fundamental e essencial. Publicado: 20/05/2008, no JORNAL DA CIDADE